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Vilebaldo Rocha | Olá, seja bem vindo

  • O SONHO DE FILISMINO

    data da publicação 22/12/2018 | Por: Vilebaldo Nogueira Rocha | Visitas: 747

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    Foto: Cartaz do filme O Sonho de Filismino

    Do alpendre da casa grande, esparramado numa preguiçosa, coronel Natário assistia à agonia do sol sendo sugado para  detrás dos picos. (O amarelo-cor-de-abóbora no poente parecia um quadro de Vincent Van Gogh, a dor escorria pelos raios de sol que resistiam aos puxavancos da noite).

    Coronel Natário era um homem de pulso forte; quando falava era um trovão; não era de muita conversa, e palavra sua não se questionava. Jamais alguém o virá dá uma gargalhada; quando muito um riso entre dentes. Seus olhos eram dois punhais negros; raramente alguém os fitava, e quando o fazia, sentia um repelão nos nervos.

    Aos seus ouvidos chegavam o mugir do gado, e o falar alto de seu  filho João Henrique e Filismino, o filho do vaqueiro. Trepados à porteira do curral gritavam com o gado e conversavam sobre seus planos, sonhos e traquinagens. Coisas de menino. (Mas segundo alguns, os homens são forjados quando criança, é ali que o coração toma corpo e forma e segue batendo no mesmo compasso o resto da vida.)

    ___Vou sê o mió vaqueiro dos Picos, disse Filismino, inchando o peito e segurando o chapéu de couro para o vento não levar. ___ Mas quero ser vaqueiro de gado meu mermo. Tê meu pedacim de chão pra cuidá, construir uma casa bem grandona, muito mais grande que essa de seu pai e vou casar com Ritinha, a filha de seu Zeca Gamela, qui eu acho qui é a muié mais bonita qui eu já vi. Vou ser um grande fazendêro - concluiu o pequeno vaqueiro, sem atinar que falara alto e que o vento é fuxiqueiro.

    Após acertar uma pedra no chifre do touro mimoso, João Henrique retrucou: ___ Pois eu não quero nem saber de roça, até que gosto de tudo isso, um leitinho quente bem cedinha na beira do curral até que é bom, mas o que eu quero mesmo é ir pra capital e estudar pra ser doutor advogado.

    Filismino deitava os olhos no gado com imensa satisfação; mas em uma novilha preta com  manchas brancas, que recebera do próprio o nome de malhada, nessa ele punha os olhos com carinho e admiração.

    ___ Essa novia é minha paxão. É a mais bonita da redondeza... é tão bonita qui nem Ritinha, parece uma fulô de mussambê no pingo do meio-dia. Um dia quando eu crescer eu vou comprar essa novia. Filismino acabara de falar e seus olhos eram puro sol.

    ___ Pede ela a meu pai, falou o filho do coronel, também apreciando a beleza do animal. ___Ele num é seu padrinho! Todo padrinho tem que dar presente ao afilhado. Meu padrinho me deu três novilhas quando eu nasci.

    Filismino fitou o céu e ficou burilando a idéia em sua cabecinha queimada de sol. Não dispunha de dinheiro; o pai também não; consequentemente, pedir seria a decisão mais plausível. Pois para realizar um sonho é necessário atitude; apenas sonhar não adianta.

    Resolveu  lutar pelo seu sonho.

    Sempre que o coronel estava ao alcance de sua voz, ele rasgava elogios à novilha. O coronel fingia  não ouvir. Mas intimamente sorria. E por traz daquele riso sinistro havia uma sombra cobrindo todo o sertão.

    Manhã de domingo.

    Filismino acordou decidido: é tudo ou nada.

    O coronel no terreiro da fazenda dava algumas ordens a Felizardo. Enquanto sorrateiramente, o menino vaqueiro aproximou-se com um brilho faiscante no olhar.

    ___ Abença padim! Falou com entusiasmo, realçando a voz.

    ___ Deus te abençoe. Mecanicamente respondeu o coronel.

    ___ Abença pai!

    ___ Deus te abençoe. Respondeu sem olhar para  o menino atento às ordens do coronel.

    ___ Padim me dá malhada de presente! Falou Filismino interrompendo a conversa.

    Houve um silêncio numa fração de segundos que pareceu uma eternidade.

    Um brilho esquisito aflorou dos olhos do coronel Natário. O futuro de Filismino estava selado naquele riso indiscritível: ou provinha das coortes celestiais ou emergia das profundezas dos infernos.

    ___ Eu dou, o coronel quebrou o silêncio.

    Filismino preparava-se para expressar com palavras e gestos o que seus olhos denunciavam, quando...          

    ___ Mas com uma condição  - redarguiu  o coronel. ___ Contanto que você deixe eu lhe dá duas chicotadas; mas tem que ser duas, se não esperar a segunda, não ganha nada. Nem novilha nem nada. Apenas  um vergalhão nas costas para o resto da  vida. Explicou em alto e bom tom o coronel.

    O pequeno vaqueiro não desceu de seu pedestal de sonhos para refletir no que seriam duas chicotadas oriundas de uma mão acostumada a chicotear cavalos.

    Apenas indagou: __ E aí pai?

    Felizardo até então se mantivera imóvel e calado. Coitado do velho vaqueiro! Também sonhava com algumas cabeças de gado. Um pedaço de terra para cultivar. De repente seria o início de uma nova vida. "Ele é padrinho, não vai machucar o menino". Pensou Felizardo, "ele gosta muito do garoto". Sem aprovar, mas pensando na possibilidade de seu menino ganhar uma novilha, deixou que o seu rapaz de oito anos de idade incompletos tomasse a decisão.

    ___ Você é quem sabe, meu filho, o lombo é seu; o sonho é seu.

    O sol já não era morno. Ardia . Como o sol ardia naquela manhã!!!

    O coronel Natário pendeu o chicote atrás das costas. Num gesto de braço o chicote cortou o vento quente de Picos e um grito de horror e desespero penetrou em cada tímpano dos habitantes do lugar.

    Sonho, carne e sangue se misturaram pelo chão.

    Nos olhos dos que ficaram, a imagem era Filismino batendo com os pés na bunda e berrando feito um animal fustigado por um ferrão de marcar. No terreiro o coronel e o vaqueiro não disseram palavra. No peito de Felizardo uma angústia intraduzível: uma vontade de se matar. O coronel sorria, intimamente sorria; parecia gritar aos quatros cantos, que naquela terra que o diabo esqueceu e ele era o senhor, filho de vaqueiro não podia sonhar com terra, gado e muito menos em ser fazendeiro.

    Filismino depois desse episódio, jamais imaginou um ato de nobreza partindo do coração de um homem.

    Não mais havia sol nos seus olhos. A noite quando caía, parecia emergir dos olhos de Filismino.

     

     



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